terça-feira, 11 de junho de 2013

Instantânea

Lendo a notícia sobre um show onde o Renato Russo fará uma participação em holograma, o músico morreu em 1996, senti-me meio cúmplice de Victor Frankenstein. Essa é a sensação de imaginar um show de um ídolo da adolescência, depois de quase duas décadas de sua morte. Imagino eles com todos os seus movimentos e caras, um Renato artificial. O músico voltará à vida graças a computação gráfica e o trabalho de uma empresa especializada na área. Pergunto-me quais músicas ele irá cantar, ou se fará duetos com outros cantores (torço para que isso não aconteça).O show acontecerá 29 de junho no novo estádio Mané Garrincha, em Brasília. Com diversos artistas homenageando o vocalista da banda Legião Urbana. Não é a primeira vez que um morto é ressuscitado para promover ou vender alguma coisa – pois a “presença” do Renato só pretende alavancar as vendas de ingressos. Fred Astaire já dançou com vassouras e aspiradores de pó quando estava a sete palmos. Mussum, dos Trapalhões, esteve de volta num comercial de carro: “Cacildis! É o Fusquis!”. Em 2007, o apresentador e comediante da TV britânica Bob Monkhouse apareceu ao lado do que seria seu próprio túmulo (de fato ele havia sido cremado), numa campanha de prevenção ao câncer de próstata, doença que o matara anos antes. O Bob ressuscitado ao lado do túmulo do Bob ainda morto diz: “O que me matou mata um homem por hora na Inglaterra. Mais do que a comida da minha mulher”. A criatura de Victor Frankenstein, o cientista do século 19 que recriou a vida no clássico livro de Mary Shelley, é quem persiste no meu imaginário. Diferentemente do monstro, nascido dos pedaços de vários mortos, a Renato da computação gráfica será quase tão perfeito quanto a minha lembrança dele. E o admiro pelo que foi, não pelo que será. Mas como no olhar de Frankenstein para a sua criatura, talvez também nesse caso exista um horror para além do encantamento de vê-lo mais uma vez. Pode ser apenas meu temor atávico, que a literatura e depois o cinema tão bem expressaram, o risco extremo de “mexer com os mortos”, que tenha me feito sentir, como tantos, que estava profanando o corpo do Renato Russo. Um temor do qual estamos impregnados também porque a ficção o tornou real e terrorífico de várias maneiras nos últimos séculos. Mas mais do que um dilema da moral religiosa, que me interessa bem menos, a questão ética é legítima e das mais interessantes. Temos esse direito? A quem pertencem os mortos? Será que o Renato pensaria em fazer um show póstumo? Desejaria? Pode ser que sim, pode ser que não, o ponto é que nunca saberemos. E, se não podemos saber, temos o direito de escolher por ele? Essas modernidades me chocam um pouco. Isso é tudo.

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